A orla corroía mulheres à margem da beleza dos cartões–postais tal qual enferrujava a memória dos antigos transportes. Tralhas de trem circundadas por rochas enormes. Os vagões foram abandonados na parte mais elevada do terreno sem nenhuma explicação ao povo. Logo a orla, senhor prefeito? Ali viviam as enjeitadas, as mulheres que carregavam o fardo da miséria desde a fundação da cidade. Essas mulheres representavam uma fatia volumosa da receita turística. Os homens vinham de todos os lugares. Os mais desejados eram turistas, nacionais e estrangeiros, pois pagavam com generosidade e traziam empolgação nos olhos. Os velhotes nativos traziam o peso da discrição estampados na testa. Já os jovens nativos buscavam a iniciação sexual e os andarilhos só queriam abrandar a carência.
Meu editor-chefe havia lançado os dados, eu só queria acertar os números. Lancei–me à caça pelo litoral. Encontrei algumas mulheres mais velhas, de quando os casarões abriam as portas às quatro da tarde e só encerravam as atividades às onze da manhã, porém nem todas estavam dispostas a falar gratuitamente. Ora, era uma chance de dar voz a elas, não?
“Procure os brotinhos dos vagões”, aconselhou–me uma delas.
Caminhei até a área dos vagões abandonados, observei a quantidade de esgoto despejado na areia da praia. Havia uma placa alertando que naquela região a água era imprópria para banho. Mantive a caminhada pelo calçadão e avistei um corpo esquálido emoldurado pelo entardecer acinzentado. Alguns dos aromas que me invadiram de surpresa vinham dos tachos de azeite de dendê em fervura e brasas com espetinhos de massambês. Aproximei-me com cautela da jovem sentada em um tamborete de ferro. Ela seria um dos brotinhos? Será que ela aceitaria conversar comigo? A hesitação não durou muito.
“Olá, tudo bem?”, perguntei sorrindo.
“E aí?”, respondeu imóvel.
“Desculpa se te assustei.”
“Não assustou.”
“Eu sou jornalista.”
Fui observado dos pés à cabeça.
“E quer o quê?”
Eu era um cliente incomum por conta do estojo de canetas e caderno nas mãos.
“Meu nome é Plínio e o seu?”
“Paula.”
“Posso lhe fazer umas perguntas, Paula?”
“Pra quê?”
“Procuro voluntárias para contar sobre o dia–a–dia aqui na orla. Como é o trabalho, os costumes e mais algumas curiosidades.”
“E vai me pagar quanto, moço?”
“Ora, muito obrigada pelo moço...”
“Tu vai me pagar quanto?”
“É, aí temos que conversar... É que inicialmente são só algumas perguntas.”
“Dois reais por cada pergunta.”
“Dois reais?!”
Pausadamente, ela confirmou com a cabeça. Suei frio.
“Tudo bem. Vamos ali aonde tem a mesa, será melhor para conversarmos.”
Ela alongou os braços para cima, bocejou alto e se levantou vagarosamente. “Ah, droga! Duas pratas por cada pergunta? Agora me ferrei!”
Nuvens carregadas encobriam as estrelas e o vento parecia gritar “Chuva! Chuva!”.
“Vai dar um temporal daqueles, né?”
“Uma merda mermo.”
“Quer beber ou comer algo, Paula?”
“Quero cerveja.”
O rapazote do quiosque prontamente entregou uma latinha de cerveja para ela e uma água tônica para mim. Mentalmente formulei perguntas diferentes daquelas escritas em meu caderno. Os interesses formais me pareciam simples diante daquele universo à minha frente. Onde nasceu? Nome da mãe e o que ela faz? Nome do pai e o que ele faz? Tem irmãos? Estudou? Como começou a trabalhar na orla? Aliás, eu realmente deveria aproveitar as perguntas, visto que teria de mexer no dinheiro reservado para compra de souvenires.
“Como é seu nome verdadeiro?”
Paula não combinava com ela. Nunca entendi essa coisa de “cara disso, cara daquilo”, mas aceito quando me dizem que eu realmente tenho “cara de Plínio”. Às vezes, acertam o meu nome no chute. Meu editor tem plena cara e bigode de Joaquim. Minha esposa tem cara de Ruth. Minha filha não tem cara de Beatriz, mas fora combinado que se fosse menina eu não opinaria. Por mim, ela seria Clarice. E aquela jovem certamente não seria Paula. Ser Paula me remetia a uma postura mais altiva e olhar mais simpático. Paula é uma palavra que nos faz abrir a boca, quase sorrir ao final. Tente gritar esse nome sem escancarar a boca. Naquele instante eu só via ombros magros, um queixo caído e semblante cansado. Aquela jovem parecia ter histórias demais para um nome tão curto.
Hum, acho que é hora de te deixar na curiosidade! Adquira já o livro e saiba como esse encontro vai se transformar em um mergulho profundo...
Leia o conto no livro A Marcha das Efêmeras_Flor, Priscila
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